Uma outra estação


Que a tua luz, Senhor, Deus-Menino, esteja sobre mim e sobre os meus! A partilha do coração é uma forma livre de traduzir os sentimentos, a história pessoal, as alegrias, as lágrimas e as esperanças de uma vida, sobretudo o fruto da resiliência, das ressignificações dos acontecimentos existenciais. A partilha é também uma corajosa profecia.

Eu me recordo do dia em que, como postulante da vida missionária, me deparei com o primeiro constrangimento: deixar ir ao chão uma peça em vidro com fotos importantes dos pais fundadores. Uma pequena distração que gerou o irreversível. O que decorrera do fato gerou um outro tipo de constrangimento, aquele de que fala São Paulo: “o teu amor me constrange, Senhor”. Esperando a pena provinda das palavras ou do olhar, fui surpreendido pelo sorriso e o olhar nos olhos, acompanhado das palavras: “Filho, o céu vale mais que isso! Vamos adiante!”.

“O céu vale mais!” A afirmação seria ridícula se o contexto não se tratasse de homens de fé. Daí que a fé já não diz nada quando nos deixamos subjugar pelos acontecimentos. A fé pode dizer “tudo” quando não abrimos mão da concepção de que não há aprendizado sem o risco da tentativa pra ser feliz. Ser feliz é o meu desejo, o desejo de cada um que respira o sopro vital, o desejo de Deus para cada um dos seus filhos.

Ontem eu vivi um descaminho, amei e odiei, construí e destruí, esperei e perdoei. Descobri que há dimensões de inocência e há dimensões de culpa. Não sei o que é o arrependimento no outro, mas sei o que ele significa em mim, não como sentença de morte pessoal na autoacusação, mas na certeza de que a gente sobrevive não apenas para contar a história, mas para o recomeço, um novo nascimento. Quando isso acontece já não temos o direito de considerar o ontem uma tragédia, mas uma escola. Enquanto prosseguia pensava: “E eu suponho que isso é somente uma fase, ainda que eu não saiba onde esteja indo”.

A gente adquire ao longo do tempo uma das mais realistas das convicções: o coração é como um vulcão, quando desperta traz consigo uma beleza que encanta e uma lava que destrói. O ódio e o amor andam tão próximos. A história sacra nos relembra isso: dois ladrões, duas sentenças. O próprio amor pode “amar erroneamente”. Quando o amor sufoca, quando exige, quando não aceita o “não”, pode se transformar numa armadilha. Eu ainda acredito que o amor verdadeiro não mata, não destrói, não humilha, não senta a fumar seu cigarro de prazer e tomar seu drink em meio a gargalhadas pelo definhar do próximo.

Mas os reencontros traduzem muitos sentimentos, como os silêncios também. Na distância e no autocontrole se esconde uma força e uma direção. Olham-nos e pensam: o que lhe acontece na vida? Respondemos quase sem palavras: estamos ocupados com a continuidade da vida porque permanecer no erro é um suicídio lento, mas certo. Esta tal continuidade não pode ser apenas uma aparência de fortaleza e de busca de resultados e conquistas, como forma de acariciar o nosso ego que deve satisfação às nossas próprias loucuras e a quem nos cobra perfeição, conquistas, vitórias materialistas, não existenciais e geradoras de felicidade. Sabemos o que queremos, mas temos medo da opressão dos que podem nos dizer: és uma obra inacabada!

Depois de tudo, passados os dias, depois de compor a minha própria canção “o livro dos dias”, a serenidade está de volta e já contemplo algumas âncoras se desprendendo de suas seguranças. Âncoras que não quiseram apoiar o meu barco quando se encontrava sem rumo, mas que se desfazem por si só porque a aparência de fortaleza não sabe o que é a compaixão. O tempo é uma escola e a melodia dos dias atuais é mesmo de reconciliação, ou como aquela linda sonoridade que emana do “Sagrado Coração”, composta pelo poeta.

Não se precipite em julgar o que há sob o véu das palavras ou em suas entrelinhas. O coração tem a última palavra. Escolha o amor, sobretudo o amor que se desfaz das muitas promessas e dos desejos irracionais. Escolha o bem dos “redimidos”, a inocência das crianças, a juventude dos felizes.  Não há constrangimento no recomeço, mas em não querer aprender com quem realmente gosta de nós. Há gente que nos quer bem, que pensa em nós.  Há um coração que nos ama de verdade. Este é o novo de ontem, rejuvenescido na nova estação chamada hoje.

Marcos